sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Poços

Então eu comecei a sonhar com pessoas sem rostos. E sobre os seus rostos haviam gravetos, coelhos e pedras e sobre as pedras haviam meninas com vestidos verdes, carvão e amores. E quando eu me esquecia de como recomeçar ela me pegava pela mão e me dizia para descansar, porque afinal todos os livros já foram escritos e esse era apenas um livro de memórias, de um jarro. Mas eu chorava e implorava, e ajoelhado de joelhos eu lhe pedia que me concedesse essa honra de ser o seu servo. E todas as vezes ela virava a face quando dessa forma eu agia.
Então foram anos e anos de inverno e neve e eu nunca mais esqueci aquele sonho em que ela adolescente me aparecia e me dava a notícia para eu acordar contente e, de alguma forma, predestinado. Esse tempo, o tempo até agora, passou para me deixar na boca o gosto amargo de uma predestinação, que talvez seja só isso, só um gosto para me lembrar de que eu não fiz nada, de que talvez toda predestinação seja isso: não fazer nada.
"Mas não é possível!", ele indaga e ela vira a face. Mais um vez a face enigmática se esconde na areia, mais uma vez eu falho por não conhecer o seu caminho. Sim, eu andei pela floresta sob o luar. Sim, eu trouxe o sacrifício e fiz a libação. Sim, eu me abstive de carne por trinta dias. Sim, eu andei sobre o terreno de uma antiga lavoura. Todas essas coisas eu fiz e só achei meio-caminhos e coisas já trilhadas, coisas que não davam certo quando aplicadas a problemas comuns.
Não. Mas eu me lembrei da vontade no início. Do desejo de ajudar por simplesmente estar ali com elas, e do encantamento nos meus olhos assim que eu a vi subir naquela pedra, e andar naquela praia em minha direção.
Reconcilie-se comigo, eu peço. Venha aqui beber o vinho e compartilhar comigo o repasto. Você sabe que nós dois somos como o que deveria começar. Como o que já está começando. Olhando nos seus olhos eu vejo que esse caminho trilhado acaba aqui. Sobre os seus olhos negros empoeirados e vejo um brilho difícil de compreender pois tão fogo-fátuo.
Senhora das encruzilhadas! Venha ao meu encontro!

Um comentário:

Anônimo disse...

Talvez vocês se encontrem e se amem loucamente numa Espanha longe dessa nossa vidinha besta. Tudo bem dizer assim, que nossa vidinha é besta?

Amo você, Rao!