quarta-feira, março 21, 2007

Mosaico andaluz (Fascination)

Deixe os gatos lá fora. Eles estão brigando, arranhando-se e matando-se e não querem ser trazidos para dentro onde nós os acariciamos e contamos histórias. Mais tarde eles chorarão como crianças, em grande agonia, e nós abriremos as portas. Todas as portas. Às quais eles entrarão elegantemente sem arranhões, sem pressa e cobertos de cores. Cores da terra, do verde e do sangue, também do rosa, do azul celeste e um amarelo solar. Eles serão mosaicos que nós pintaremos e adoraremos com dedicação e afinco, comprometidos com a nossa própria veneração de Nossos ídolos subirão montanha, pularão de arquipélago em arquipélago, nossos gritos os seguirão em promontórios, uma telepatia que os fará virar pescoços para olhar-nos enquanto nós os observamos daqui.
Serão grandes felinos estelares, dos tamanhos das galáxias e deusas, bebedores de leite e sangue, profanadores da justiça e do bom-senso. Nós os adoraremos em silêncio, quando a fria faca da noite recostar em nossos pescoços sem esperar o golpe amotinado dos nossos membros inferiores, buscando recompensas.
Sim, nós fomos massacrados mas somos gatos e choramos desde que um corte sensível foi feito em nossa órbita ocular, para chorarmos para sempre e houve vezes em que fechamos os olhos, preferimos que essa paisagem fosse embora mas a remela continuava acumulando-se denunciando sempre a nossa imperfectibilidade. E nós ousamos, sim, nós ousamos pular montanhas e aquipélagos e rir de senhorias e senhoras e deitar na grama e colher o gado, mas nós nunca, nunca, desafiamos os cortes em nossos olhos, essa ferida aberta que lacrimeja. Sim, tentamos esperar ou agir e o tempo, oh, o tempo nos abandonou mas não deixou de armar seus truques, nós caímos em todos eles com a esperança de alguma sabedoria adquirida, sem lembrarmo-nos, por fim, que bastava dar um pulo para evitar esse buraco.
Gravetos e gravetos em nossos olhos nos impediram de ver a verdadeira figura que nos dizia claramente que tudo estava bem, que na realidade nós não éramos as vítimas, e o mistério se abriria em uma milhão de tapeçarias bordadas com novos motivos rubros e dourados penduradas sobre nossos leitos.
Eu, meus amigos, me confessei, era um gato com necessidade de sê-lo. Era um gato amarelo e a fissura nos meus olhos me fascinava. Por isso eu também subi montanhas e arquipélagos com meus olhos e gritando e eu quis me retirar da agonia. Sem saber que o destino estava aqui. E me revolvi três voltas ao redor de mim mesmo, e jurei rezas pra quem é que for e pedi para que não me pensassem com tristeza, nem eu por mim, mas foi inevitável retornar aqui. Jurar amor a essas tapeçarias, a esse amor que de tão longe esqueci e o tempo me foi apagando, tão suave que eu não vi...
Agora. Recompensa, resposta. Destino. Atração. Objetivo, tração. É essa carroça que vai me levando na estrada estrada, tão longe pro mar e eu só quero me dar pro deus-oceano, me debulhar no seu altar, no seu altar, no seu altar. Eu venho lá de longe, pata a pata, tentando descobrir de onde vêm esses dentes, de onde vêm essas garras, de onde vêm esses olhos?
Como um gato eu me alojei em mim, dei três voltas ao redor de mim, lembrei de mim. Lembra? E aquelas memórias não eram boas, mas quem sabe a arqueologia das memórias. Me deixa atordoado, todo esse espetáculo que eu posso fazer de mim.